A FLEXIBILIZAÇÃO DA PUBLICIDADE DIRIGIDA ÀS CRIANÇAS NÃO AS PROTEGE
Em recente comunicação realizada por ocasião de Seminário organizado pela Secretaria Nacional do Consumidor tendo por tema a necessidade de regulação da publicidade infantil, Sergio Moro, atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, teria afirmado, textualmente, ter ouvido "reclamação que me pareceu correta, na área da TV, de que uma regulação excessiva causava o afastamento da publicidade para esse setor. Como a TV muitas vezes sobrevive através de anúncios e anunciantes, isso gerava dificuldade de se produzir material destinado ao público infanto-juvenil".
A questão não é nova no Brasil.
Para além das falácias que informam a dimensão econômica incorporada de forma simplista à fala ministerial - recentemente desmistificadas por Adalberto Pasqualotto e Fernando Rodrigues Martins em textos marcados por inconteste lucidez (ver aqui e aqui) - e, ainda, do inegável tratamento normativo do tema alcançado no âmbito do estado da arte nos níveis global e nacional, temas igualmente ventilados pelos citados autores, é preciso lembrar que crianças, em tenra idade, vivem em um universo mágico, que os infantes, em especial, os mais novos, vivem, no mundo de fantasias que lhes é inerente em razão de sua condição peculiar.
Crianças acreditam em tudo que lhes é contado: elas creem no Papai Noel, no Coelhinho da Páscoa, na Cegonha que traz os bebês[1], no Bicho-papão e, nessa linha, obviamente, em tudo aquilo que lhes é apresentado por meio da atividade publicitária.
Tal fato, como aponta de forma precisa Benjamim Barber, é explorado pelo Mercado[2] que por meio da publicidade cria universos lúdicos cheios de sons e de cor e se apropria de personagens infantis com o único escopo de encantar e seduzir crianças que, muitas vezes, privadas de qualquer discernimento, revelam-se incapazes de perceber todo o apelo persuasivo que é a elas direcionado direta ou reflexamente.
Aliás, se a publicidade é capaz de seduzir adultos, criando necessidades e desejos até então inexistentes, o que não poderá fazer com os pequeninos? A resposta a essa questão, transita, necessariamente, pela percepção de que as crianças - especialmente, aquelas em tenra idade - não conseguem distinguir os relatos de fatos das narrativas de fantasias que permeiam o mundo em que vivem[3].
Importante evidência disso está contida em pesquisa realizada pela Mediamark Reseach Inc. que concluiu que as crianças, ao contrário dos adultos, não pulavam os anúncios da televisão ou mudavam de canal por ocasião dos reclames comerciais. A pesquisa relatou, ademais, que 60% das 5.400 crianças entrevistadas entre 6 a 12 anos afirmaram que assistiam a publicidade como se fizesse parte da programação[4].
Ademais, a publicidade ao lado de outras formas de comunicação mercadológica "educa" a criança para o consumo, influenciando, assim, diretamente na sua formação psíquica e na construção de sua personalidade, na formatação de seu caráter e de seus valores éticos, sociais, culturais e morais, impactando, consequentemente, no crescimento sadio e feliz dos pequeninos ao potencializar fenômenos como a obesidade infantil, a erotização precoce, o estresse familiar e a redução da capacidade de socialização ligada à diminuição das brincadeiras[5].
Curiosamente, frente a estas breves, sinceras e preocupantes constatações, ainda há quem acredite ser possível flexibilizar a publicidade e, ao mesmo tempo, proteger nossas crianças! A questão se agiganta quando dentre tais pessoas podem ser listadas as personagens que são responsáveis pela condução das políticas públicas afetas ao tema e que parecem ignorar, como respeitosamente, parece fazê-lo o senhor Ministro Sergio Moro, que a Constituição Federal, desde 1988, assegura prioridade absoluta no que toca à proteção de nossos filhos e filhas - esses pequenos seres em formação[6] - o que vai ao encontro ao internacionalmente reconhecido Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.
Nessa esteira, se as crianças são destinatárias de prioridade normativa absoluta quaisquer outros interesses hão de ser afastados quando em conflito com direitos afetos a esse imenso conjunto de seres humanos!
Uma vez mais é preciso resgatar que a Constituição Federal impõe a todos nós o dever de cuidar dos infantes, comando normativo que ganha densidade nas regras elencadas nos Estatuto da Criança e do Adolescente[7] vigente desde 1990. E como se isso não bastasse, o Código de Defesa do Consumidor, como é amplamente sabido, disciplina que a publicidade só pode ser veiculada se for reconhecida como tal[8]. Logo, como exposto, se as crianças não conseguem perceber como tal a comunicação mercadológica que lhes é direcionada, resta patente, a partir do Código de Defesa do Consumidor, que qualquer forma de publicidade a elas dirigida é conduta explicitamente vedada, entendimento, aliás, consubstanciado pelo CONANDA por meio de sua Resolução de número 163.
Enfim, registre-se aqui que outro recentíssimo avanço normativo no direito brasileiro - a Lei de Políticas para a 1ª Infância - impõe a proteção das crianças frente às pressões consumistas[9].
Todo o exposto mostra claramente que somente tutelaremos nossas crianças cumprindo a promessa constitucional com a assunção da compreensão hermenêutica de que toda publicidade a elas direcionada é contrária ao Direito e que, obviamente, a proposta de flexibilização aventada por meio da consulta pública sobre publicidade infantil [sic] ignora a clareza de tudo que fora aqui exposto, bem como, despreza um sem número de direitos fundamentais; consulta pública que nasce viciada - por fugir ao cerne da discussão - como pode perceber qualquer observador minimamente atento que se disponha a ler seu conteúdo.
Enfim, que percebamos todos que tutelar adequadamente nossas crianças não pode ser percebido como algo afeto ao paternalismo ou ser compreendido como excesso de regulamentação. Proteger nossas crianças é dever que transborda quaisquer ideologias político-partidárias, que vai além de qualquer compreensão individual e, obviamente, que não pode ceder face à violência do capital. Temos todos o dever de garantir, a nossas crianças, uma infância sadia e feliz.
Notas e Referências
[1] HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida à criança. Curitiba: Juruá, 2012.
[2] BARBER, Benjamin. Consumido: Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
[3] BARBER, Benjamin. Consumido: Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
[4] IVES, Nat. No skipping: children still watch TV ads apud BARBER, Benjamin R. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 262.
[5] HENRIQUES, Isabella. O capitalismo, a sociedade de consumo e a importância da restrição da publicidade e da comunicação mercadológica voltadas ao público infantil. In: PASQUALOTTO, Adalberto; ALVAREZ, Ana Maria Montiel (Org.). Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: LAEL, 2014 e PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua (in)conformidade com o direito brasileiro. 2017. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Lasalle, Canoas, 2017.
[6] Art. 227, caput, da Constituição Federal, "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
[7] Art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente: "A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade".
[8] Art. 36 do Código de Defesa do Consumidor: "A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal".
[9] Art. 5º da Lei de Políticas para a 1ª Infância: "Constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.
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Gabriela Balbinot é Graduada em Direito pela Unisinos. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e ao Agendas de Direito Civil Constitucional.
Marcos Catalan é Doutor summa cum laude em Direito pela Faculdade do Largo do São Francisco, Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Unilasalle. Professor no curso de Direito da Unisinos. Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho da Universidade da República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidade de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidade de Córdoba na Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista.