O TRABALHO PRECÁRIO E O FIM DA FAMÍLIA
O novo filme de Ken Loach, diretor de "Eu, Daniel Blake", chamado "Você Não Estava Aqui" - trailer no Youtube -, relata o dia-a-dia de uma família submetida ao novo regime de trabalho do capitalismo global, de flexibilização baseada na condição contínua de subemprego - muitas vezes chamado de gig economy ou uberização do trabalho. Ricky é o pai da família, que relata a ampla experiência de trabalho em diversos setores, que também aponta sua relação de profissão sempre com a necessidade, agora obrigado a trabalhar de entregador franquiado - situação essa que ele se torna responsável pela Van que faz as entregas, não recebe salário e não é considerado empregado - "é o próprio patrão". Abbie é a mãe da família, enfermeira, cuidadora de idosos, que agora trabalha sob o regime de um aplicativo que gere seus pacientes e sua agenda - como um uber. Eles são responsáveis por dois filhos em idade escolar.
A rotina de ambos é a demonstração do cansaço e do excesso de responsabilidades, estando a todo tempo sob a corda bamba da economia, não sabendo se no dia de amanhã seu trabalho continuará a ser, minimamente, valorizado. A família carrega um peso econômico que são as dívidas adquiridas após a crise financeira de 2008 - culpa das aventuras gananciosas de outros. O núcleo familiar, quanto aos afetos, que se demonstrava forte e unido, começa a ruir pelo desgaste, stress, burnout e a desesperança, essa última que afeta principalmente os dois filhos, na medida que o filho mais velho, Seb, para de frequentar a escola justamente por compreender que esse caminho levará a ter, nada mais, que a vida do pai.
Não é novo que as pautas conservadoras colocam nos movimentos sociais de esquerda ou em algo que chamam de "marxismo cultural", a culpa de um suposto fim da família, em que a ordem sociais que constituem a família estariam abaladas pelas ideias de novos afetos sob a constatação da homossexualidade ou das relações poliamorosas, entre tantos outros "culpados". O filme aqui relatado mostra o contrário: as exploratórias relações de trabalho destroem os afetos e só estimulam práticas individualistas como o consumismo.
Entretanto, após enxergar a família desse ponto de vista, dos afetos, talvez seja preciso contemplá-la a partir da estrutura social que a constitui e registrar a possibilidade que, dentro do cenário capitalista, o papel da família tem sido cumprido, independente e até contra os afetos familiares entre pais e irmãos. Enxergar a família sob o capitalismo condiz com o princípio materialista utilizado pelo marxismo que Engels, em "a origem da família..." de 1884, compreende que as formas de reprodução da vida, como os meios de existência e subsistência são fundamentais para compreender a história, entre eles está a família, o Estado e o Direito. Nesse texto é identificado o papel da monogamia como opressão entre os sexos, um antagonismo de classes que constitui o chamado patriarcado - que o homem é responsável pela guarda dos laços conjugais e por isso exige castidade e fidelidade a mulher[1].
Essa divisão sexual do trabalho expõe a família como mecanismo indireto de produção de mais-valia, sendo o custo do trabalho das mulheres - estabelecido e naturalizado pelas amarras do gênero - absorvido pelo capital sem empecilhos, pois a mulher não faz mais que sua obrigação. A ideologia moral da família afasta a objetificação do trabalho doméstico não remunerado, tendo em vista que é a expressão do "amor" aos filhos e ao marido e se realiza na sagrada esfera privada do núcleo familiar, como aponta a tese de Andréa Gama[2]. E, quando ocorrem processos de "emancipação", a mulher resta o papel duplo das responsabilidades dentro e fora de casa - que Roswitha Scholz chama de mulheres "duplamente socializadas"[3]. A economia política da família possui braços dentro e fora do chamado ambiente familiar, tendo efeitos no trabalho doméstico e na condição de subsunção ao capital no trabalho assalariado.
A família tem o efeito, no capitalismo, de docilização dos corpos, como diria Michel Foucault, é o bom marido, esposa ou filhos que podem ser aprimorados e transformados para o trabalho e a vida socialmente adequada. O corpo dócil, da sociedade disciplinar ao controle biopolítico, reflete uma anatomia política capaz de fazer com que pessoas diferentes, de locais diversos e origens distantes, se comportem como se tivessem um método geral de viver[4]. Entretanto, a abertura ao dispositivo biopolítico das escolas, por exemplo, expôs os cativeiros das famílias a novas expressões de sexualidade e reivindicações dos corpos[5], não sendo acaso os pânicos moralistas, de presidentes da república, que associam a educação pública com alguma "degeneração" sexual. A entidade familiar do capitalismo enfrenta uma luta diária contra a realidade, que expõe novas formas de vida e de representar corpos, sendo obrigada a repetir dogmas religiosos para cumprir sua função estruturante no modo de produção.
É evidente, também, o papel da família na vida cotidiana sob o capitalismo no contexto de uma sociedade de consumo. A vida familiar sugere hábitos de consumo igualmente familiares, ou seja, padrões de consumo e de identidade social. que dirigiu o consumo familiar para os espaços privados, da praça pública ao shopping center, sendo o ato de comprar o "programa" adequado para as famílias - influenciando o espaço urbano a estruturações de consumo massificados[6]. Também, o ambiente adequado para as crianças[7], dignas de serem sujeitos é o papel de potenciais consumidores - correspondendo a importante fatia de mercado - incentivados por discursos midiáticos que promovem a indispensabilidade de bens de consumo infanto-juvenis para uma criança ser socialmente aceita e adequada em seus círculos.
Recentemente, a ativista transfeminista Amanda Palha, para quem deixo minha solidariedade, foi atacada na internet por expor suas ideias para a radicalização do Movimento LGBT - palestra no youtube -, ao apontar para necessidade de, sim mesmo, lutar contra a entidade familiar. Ela declara essa obrigação justamente ao compreender a família nesse contexto da estrutura social capitalista, como servil a ela e condição para a exploração do trabalho e dos corpos. Ela também declara que isso não significa o fim dos afetos, pelo contrário, abre a possibilidade para mais formas de afeto que não contemplem os trejeitos dessa ordem derivada de uma reprodução social sociometabólica - que destrói a si mesma em prol de seu desenvolvimento. Tal qual diziam Marx e Engels no "Manifesto"[8], o chilique burguês acerca da moralidade familiar e a necessidade de conservação dos seus laços, sempre foi uma grande mentira e hipocrisia, jamais teve o intuito de preservar afetos e incentivar o cultivo de novos, mas de manter as relações de exploração do trabalho e disponibilidade completa de alguns corpos à morte.
Portanto, a instituição familiar na reprodução social capitalista nada mais é que um mecanismo para manter a exploração do trabalho, em suas diversas formas, e a violência e segregação de gênero. O interesse em sua conservação dessa forma - capitalista e sacralizada na monogamia heterossexual - nada tem a ver com os afetos imanentes daqueles entre pais e filhos ou quaisquer pessoas que tenham relações dignas de sentimento, para que o afeto seja efetivamente incentivado, é preciso construir formas de sociabilidade sem exploração e opressão, a realidade do capitalismo aponta para o contrário e coloca os sentimentos contra a parede em nome da expansão de seus maiores inimigos - como em cena do filme "Você Não Estava Aqui", em que o pai da família, doente e ensanguentado, resiste aos apelos e choros de seus filhos e esposa para ficar em casa, pois precisa fazer entregas imediatamente.
Notas e Referências
[1] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9 ed. Tradução: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. p. 70.
[2] GAMA, Andrea. O conflito entre trabalho e responsabilidades familiares no Brasil: reflexões sobre os direitos do trabalho e a política de educação infantil. Rio de Janeiro. 2012. Tese (doutorado). Programa de Pós Graduação em Saúde Pública. ENSP, FIOCRUZ, 2012.
[3] SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Disponível em: https://www.obeco-online.org/roswitha_scholz3.htm.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 165
[5] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1996.p. 146
[6] Ver: SANTOS, Norberto; MENDES, Antonio. Cadernos de Geografia, n. 18, 1999. Disponível em: https://dl.uc.pt/bitstream/10316.2/40431/1/Os%20espacos-tempos%20de%20lazer%20na%20sociedade.pdf.
[7] ver: GROSSI, Patrícia Krieger; DOS SANTOS, Andréia Mendes. Infância comprada: hábitos de consumo na sociedade contemporânea. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 6, n. 2, p. 443-454, 2007. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/2327/.
[8] "Abolição da família! Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas. Sobre que fundamento repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia, mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública.
A família burguesa desvanece-se naturalmente com o desvanecer de seu complemento, e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital." em: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em: https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf. p. 36
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Norberto Knebel é Mestrando em Direito no Unilasalle-Canoas/RS. Membro do grupo de pesquisa Teorias Sociais do Direito. Bolsista CAPES/Prosup.