VIDA E DIREITO COMO “PRODUTOS DESCARTÁVEIS”: SINAIS DOS TEMPOS DE EXCEÇÃO…
Entre tantas interrogações que se impõem nestes tempos de anormalidade, uma, em particular, aos olhos de todos, sejam eles filósofos, juristas ou cidadãos comuns, ganha especial importância: trata-se de saber em que medida vida e direito estão sendo tratados como "objeto de descarte". Nesse propósito, e para que se possa trilhar algum caminho de resposta, dois filósofos, Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Giorgio Agamben (1942), despontam, a partir de algumas de suas diferenças, de tempo e de conceito, como referências a estimularem a reflexão contida neste breve ensaio.
Para Nietzsche, a ideia imanente de vida e sua contingência pressupõem que nos questionemos a respeito das forças que provêm da chamada vontade de potência. Essa consiste em uma capacidade de o homem criar suas próprias condições de potência, na intenção de estabelecer seus valores em suas decisões. O homem passa a ser domesticado e, quando submetido a formas de vida, tende a um apequenamento de sua existência, enquanto ser no mundo. De acordo com o filósofo alemão, o projeto civilizatório faz do homem um animal de rebanho para torná-lo obediente aos padrões morais e sociais, reprimindo, assim, a potência de vida[1]. Por sua vez, Agamben entende que há um apoderamento político da vida, ao exercer o direito de classificar, desqualificar e sacrificar a vida humana, transformando-a em vida nua[2].
Trata-se de ter em conta que, aqui, a vida é protegida pela lei e, ao mesmo tempo, à margem da lei, que é a lógica dos Estados-nação, cuja condição de produção e consumo precisa dar manutenção ao mercado[3]. Como se observa, existe um ponto de atravessamento entre os dois filósofos, dado que, tanto em Nietzsche, quanto em Agamben, constata-se o movimento de tomar a vida como lócus de resistência a estes poderes de apequenamento da vida humana. Tal atitude é pontuada por Agamben que indica a biopolítica como estrutura da política ocidental, em que o poder rebaixa a vida à vida nua, àquela que pode ser descartada no momento que não mais atende aos interesses administrativos e econômicos do Estado[4].

Cada vez mais, ideias e valores, na legitimidade da vontade de potência em Nietzsche, são meios e fins que fundamentam o comportamento do indivíduo: é a vontade fervorosa de criar forças ativas e passivas ao estabelecer hierarquias[5]. Nesse tempo de produção e consumo, os sujeitos são retirados do âmbito público, das decisões políticas e colocados a serviço da administração jurídica, regida por interesses econômicos (também políticos e morais), faz viver ou deixa "morrer" em nome da legalidade política[6].
Diante disso, o direito tem sido substituído pela vontade de potência, descartando-se e suspendendo-se o ordenamento em situações de espaço temporal. A vida apresenta-se como "matável", já que basta a mirada na situação política e social do tempo em que vivemos. Mas, também, o modus de descarte da vida, ou do direito, o qual lhe confere consistência e substância, não se gera apenas no interior do campo social e político: expande-se para as instituições jurídicas, oportunidade em que a lei, instrumentalizada pelo intérprete, aplicador e demais atores, torna-se objeto de suspensão, caracterizando, dessa forma, o estado de exceção, como paradigma não somente de governo em sentido lato, mas como prevalência de um "soberano", cuja vontade de potência, como saldo líquido, executa o direito e mata sua autonomia.
Portanto, e por tais razões, é preciso retomar Agamben e seu diálogo com Nietzsche, especialmente quando a reflexão aqui exposta, revela os sinais do momento crucial e perigoso que atravessamos. Vida e direito são consumidos e descartados para fins determinados, retirando-lhes seu caráter e conteúdo vinculativo e de segurança mínimos, colocando em xeque seu sustentáculo de organização democrática. A partir disso, convém sempre lembrar:
"Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. "[7]
Notas e Referências:
[1] ESPINDOLA, Alexandra Filomena. Vida em potência: Nietzsche e Agamben sob a ótica de Assman e Bazzanela. Palhoça: Crítica Cultural, 2014.
[2] idem
[3] ESPINDOLA, Alexandra Filome. Vida em potência: Nietzsche e Agamben sob a ótica de Assman e Bazzanela. Palhoça: Crítica Cultural, 2014.
[4] idem
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[6] ASSMAN, Selvino José; BAZZANELA, Sandro Luiz. A vida como potência em Nietzsche e Agamben. São Paulo: Liberars, 2013.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

Rafael Alexandre Silveira é Bacharel em Direito. Graduando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas. Especializado em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito e Sociedade pela Unilasalle, Canoas, RS. Membro do grupo de pesquisa Teorias Sociais do Direito.